domingo, 6 de janeiro de 2008

"...O CORPO DE UM POEMA"


"Olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas"

Ana Cristina Cruz César, nasceu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952. Por gostar muito de artes e de escrever ja em 1959, teve as primeiras poesias publicadas no “Suplemento Literário” da “Tribuna da Imprensa”. Foi Licenciada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1975, obtendo o grau de Mestre em Comunicação, pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1979 e Master of Arts in Theory and Practice of Literary Translation, pela Essex University, na Inglaterra em 1980. Além de suas inumeráveis poesias e cartas, escreveu para diversos jornais e revistas e traduziu diversos autores estrangeiros. Entre esses autores, inclui-se a poetisa americana, Sylvia Plath, que da mesma forma que Ana César faria mais tarde, colocou um fim à sua própria vida. Ana C.(como também era conhecida) suicidou-se em 29 de outubro de 1983 ; pela sua juventude e beleza, pelo conteúdo e forma de sua obra, pela interrupção brusca de sua vida e do seu talento, tornou-se um símbolo e um ícone lembrada até hoje.

Tendo em vista as circunstâncias de sua morte e o fato de Ana César ter deixado uma série de documentos, tais como cartas, poesia, diários, traduções, desenhos e testemunhos, seus livros foram reagrupados e republicados, bem como foram também publicados outros documentos inéditos.


PROTUBERÂNCIA

Este sorriso que muitos chamam de boca

É antes um chafariz, uma coisa louca

Sou amativa antes de tudo

Embora o mundo me condene

Devo falar em nariz (as pontas rimam por dentro)

Se nos determos amanhã

Pelo menos não haverá necessidades

frugais nos espreitando

Quem me emprestar seu peito na madrugada

E me consolar, talvez tal-vez me ensine

um assobio

Não sei se me querem, escondo-me sem impasses

E repitamos a amadora sou

Armadora decerto atrás das portas

Não abro para ninguém, e se a pena é

lépida, nada nem detém

é sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos

O círculo se abre em circunferências

concêntricas que se fecham sobre si mesmas

No ano 2001 terei 49anos e serei uma rainha

Rainha de quem, quê, não importa

E se eu morrer antes disso

Não verei a lua mais de perto

Talvez me irrite pisar no impisável

E a morte deve ser muito mais gostosa

Recheada com marchemélou

Uma lâmpada queimada me contempla

Eu dentro do templo chuto o tempo

Uma palavra me delineia

VORAZ

E em breve a sombra se dilui,

Se perde o anjo.


FAGULHA

Abri curiosa o céu.

o céu

Assim, afastando de leve as cortinas.


Eu queria entrar,

coração ante coração,

inteiriça

ou pelo menos mover-me um pouco,

com aquela parcimônia que caracterizava

as agitações me chamando.


Eu queria até mesmo

saber ver,

e num movimento redondo

como as ondas

que me circundavam,

invisíveis,abraçar com as retinas

cada pedacinho de matéria viva.


Eu queria

(só)

perceber o invislumbrável

no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria

apanhar uma braçada

do infinito em luz que a mim se misturava.


Eu queria

captar o impercebido

nos momentos mínimos do espaço

nu e cheio.


Eu queria

ao menos manter descerradas as cortinas

na impossibilidade de tangê-las.


Eu não sabia

que virar pelo avesso

era uma experiência mortal.

-ANA CRISTINA CÉSAR-

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